terça-feira, janeiro 09, 2024

 

Execução de Julgados no processo tributário - baralhar e dar de novo.


Como é sabido, no contencioso tributário é possível cumular o pedido-tipo de anulação da liquidação do tributo com o pedido de condenação da Administração Tributária: i) na restituição do imposto pago, acrescido de juros ou ii) na indemnização dos encargos incorridos com a indevida prestação de garantia (o que apenas depende da opção entre pagar ou garantir a liquidação impugnada)

Configurado desta forma o litígio tributário típico, e na medida em que o mesmo seja julgado favoravelmente no sentido defendido pelo Contribuinte, surge a questão de saber qual o prazo de que a Administração Tributária dispõe para cumprir voluntariamente a decisão judicial – e isto dando por assente, face à actual redacção da lei, que tal prazo se inicia a contar do trânsito em julgado da sentença (e não da pretérita questão sobre a “remessa do processo” à AT) – cfr. art. 146.º n.º 2 CPPT.

A questão é pertinente porque alguma jurisprudência tende a considerar que o prazo de execução espontânea das sentenças e acórdãos dos Tribunais Tributários é de três meses (Cfr., por exemplo, Ac. STA de 03.12.2008, proc. n.º 0708/08).

Ora tal prazo apenas pode encontrar justificação em matéria administrativa, na medida em que, na sequência da anulação do acto administrativo, a administração pública se vê frequentemente na contingência de encetar um procedimento tendente a “reconstituir a situação hipotética que existiria à data do trânsito em julgado, como se o acto ilegal não tivesse sido praticado.” (Cfr. Diogo Freitas do Amaral, “A execução da sentença dos tribunais administrativos”, 2ª ed., Coimbra, 1997).

Dispõe o artigo 173.º n.º 1 do CPTA que a anulação de um acto administrativo constitui a Administração no dever de: (i) reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado; (ii) de dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento no acto entretanto anulado, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter actuado; ou no dever de (iii) substituir do acto ilegal por outro acto administrativo, sem reincidência nas ilegalidades anteriormente cometidas.

De facto, «(…) a execução da sentença anulatória do acto administrativo consiste na prática pela Administração - a quem incumbe tirar as consequências da anulação - dos actos e operações materiais necessárias à reintegração da ordem jurídica violada de molde a que seja restabelecida a situação que o interessado tinha à data do acto ilegal e a reconstituir, se for caso disso, a situação que o mesmo teria se o acto não tivesse sido praticado.» (Ac. TCAN, de 14.06.2007, dado no proc. n.º 00407/06.0BEPNF).

Todavia, como constitui recorte específico do contencioso tributário, está em causa sindicar a legalidade de um acto administrativo que materializa uma ablação patrimonial do administrado e que, por isso, se traduz no dever de pagamento de uma determinada quantia de imposto.

Por conseguinte, a execução coerciva do julgado que determina a anulação desse acto passa também ele, inevitavelmente, pelo pagamento de uma quantia – seja por restituição do imposto e acrescido (caso o administrado tenha optado por pagar o tributo), seja pelo pagamento de uma quantia indemnizatória (caso o administrado tenha optado por prestar garantia idónea).

Assim sendo, e concretamente nos casos em que o acto tributário judicialmente anulado foi pago, a AT está na posse de todos os elementos necessários para a reconstituição da situação tributária, afigurando-se evidente que para concretizar os necessários actos materiais – mormente a anulação da liquidação e o processamento de nota de crédito contendo o imposto indevidamente exigido, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios (quando judicialmente reconhecidos)  – é perfeitamente razoável (e suficiente) o prazo de 30 dias  - sobretudo em face da actual informatização da máquina administrativa fiscal.

Nesse sentido tem caminhado, e bem, a nossa Jurisprudência recente (Cfr. Ac TCAS de 13.07.2023, proc. n.º 2175/04.0BELSB-A).

Vale isto por dizer que, para a correcta adaptação do contencioso tributário ao processo de execução de julgados regulado no CPTA, importa desde logo definir expressamente que a execução do julgado tributário deve ser voluntariamente promovida no prazo de 30 dias (como dispõe o artigo 175.º n.º 3 do CPTA) e não no prazo de três meses.

Para assim concluir basta atender ao teor (redundante) da decisão de um processo de execução de julgados em matéria tributária. De facto, o Tribunal que proferiu a decisão exequenda – e que, portanto, com a anulação da liquidação, condenou a Administração Tributária na restituição do imposto ao Contribuinte acrescido de juros (decisão que, como se disse, deveria ser cumprida no prazo de 30 dias) – vê-se na contingência de proferir uma nova decisão em que condena a Administração Tributária (novamente) na restituição do imposto ao Contribuinte acrescido de juros, em idêntico prazo de 30 dias (art. 179.º n.º 4 CPTA)...

Na prática, a execução de julgados tal como se encontra configurada para o contecioso administrativo, e sendo aplicada ao contencioso tributário sem qualquer ajuste à sua especificidade, pode mesmo colocar o Tribunal na circunstância de praticar um acto inútil – vgr. nova condenação no pagamento que já resultava da sentença exequenda e que, como tal, se impunha directamente à Administração Tributária por força do disposto nos artigos 158.º e 159.º do CPTA, e 100.º da LGT.

Acresce que a própria tramitação do processo de execução de julgados é ele próprio moroso, e redundante, na medida em que, por norma, a “oposição” apresentada pela Fazenda Pública se circunscreve à afirmação de que foram encetados os meios tendentes ao cumprimento do julgado, com o compromisso de “oportunamente” se dar nota desse cumprimento ao Tribunal. Desta forma, e pese embora a Administração Pública não apresente oposição e, em lugar disso, confesse o incumprimento tempestivo, o Tribunal é colocado na circunstância de, periodicamente, questionar a Executada sobre se já procedeu ao pagamento e simultaneamente questionar a Executada sobre se já recebeu esse mesmo pagamento.

Bastará, por exemplo, uma simples auditoria aos processos de execução de julgados pendentes no TAF do Porto para aferir que o Tribunal é investido pela Administração Tributária numa posição de verdadeiro “mediador”, indevidamente instrumentalizado para a dilação no tempestivo cumprimento de uma decisão judicial pela AT.

Ora, para além das evidentes entorses aos princípios da igualdade, proporcionalidade e justiça, é colocado em causa o princípio da tutela jurisdicional efectiva – na medida em que o Contribuinte é colocado na circunstância de esperar indefinidamente pelo cumprimento do julgado.

De resto, uma larga maioria dos processos de execução de julgados findam por inutilidade superveniente da lide – precisamente porque apenas na pendência do processo (e por causa dela) a Administração Tributária decide cumprir a sentença. Nas demais situações, minoritárias, o Tribunal é colocado na posição de repetir a condenação que já constava explicitamente da decisão exequenda.

Cumpre notar que por força de recentes alterações legislativas (Lei n.º 7/2021, de 26.02), foi aditado ao artigo 100.º da Lei Geral Tributária o n.º 2 onde se estabelece que, no procecimento tributário, a reposição da legalidade da situação deve ser efectuada no prazo de 60 dias.

Em moldes similares, e em paralelo com o artigo 179.º n.º 4 CPTA, deveria ser aditado também um n.º 3 ao preceito, estabelecendo-se que, no processo tributário, a reposição da legalidade deve efectuar-se no prazo de 30 dias. 

De facto, o litígio tributário apenas pode ser dado por concluído com a “imediata e plena reconstituição” a que alude o artigo 100.º da LGT e, nessa medida, a clarificação do prazo de execução espontânea do julgado agiliza, pelo menos, o término de tal litígio.

De igual modo, muito do labor do Tribunal poderia ser significativamente reduzido com a simplificação do processo de execução de julgados quando aplicável a decisões do foro tributário, ou, pelo menos, estabelecendo-se a imediata tramitação do processo nos casos em que inexiste fundamento válido para oposição.

No que tange à morosidade do processo e pese embora os artigos 171.º e 177.º do CPTA estabeleçam o prazo de 20 dias para prolacção de decisão, na prática verifica-se que os processos de execução de julgados podem estar pendentes por prazos superiores a um ano.

Por outro lado, e relacionado precisamente com a pendência dos processos executivos - sobretudo motivada pela posição adoptada pela Administração Tributária e pela inércia do Tribunal na prolacção da correspondente sentença – verifica-se uma completa desarticulação com a natureza urgente de alguns processos.

Com efeito, sendo certo que, por exemplo, a reclamação de actos, omissões e decisões do órgão de execução fiscal, nos termos do artigo 276.º sgs do CPPT, reveste natureza urgente, a ulterior execução coerciva do julgado perde essa natureza – colocando indelevelmente em causa a tutela jurisdicional peticionada ao Tribunal e, sobretudo, o efeito do processo.

Limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento - quanto à (in)aplicabilidade a intermediários financeiros

De acordo com o Relatório do Orçamento do Estado para 2013, a criação do regime de limitação à dedutibilidade dos gastos de financiamento visou “promover a redução do endividamento excessivo da economia e mitigar a histórica propensão do sistema fiscal para privilegiar o funcionamento da actividade económica através da dívida”.

Parte-se assim da constatação de que o tratamento dado aos rendimentos resultantes do investimento de capitais próprios e aquele concedido ao rendimento resultante do investimento de capitais alheios não era equitativo nem neutral, favorecendo estes últimos (debt bias), e tornando as empresas mais dependentes de financiamento e mais expostas aos riscos do mercado financeiro.

De igual modo, após os avanços e recuos do pretérito regime fiscal da subcapitalização, ditados sobretudo pela Jurisprudência do TJUE, visou-se contrariar quer a prática de operações que, sob a aparência de contratos de empréstimo, constituem verdadeiras entradas de capital, quer práticas tendentes a ampliar artificialmente as despesas relativas a juros.

Neste particular, a exclusão subjectiva prevista no artigo 67.º n.º 11 do CIRC, quanto às entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal (BdP) e do Instituto de Seguros de Portugal (actualmente Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), acarreta que, por princípio, às mesmas não são aplicáveis as sobreditas finalidades de natureza extrafiscal.

Ou seja, tais entidades não estão limitadas, no exercício da sua actividade, pelas restrições de índole fiscal previstas no artigo 67.º CIRC – o qual replica, para o ordenamento jurídico nacional, a solução anteriormente já adoptada por outros países europeus, nomeadamente a vizinha Espanha.

Ora, já no âmbito do regime da subcapitalização, era defendida a inaplicabilidade de tal regime às entidades financeiras – a exemplo do previsto, precisamente, no regime da subcapitalização espanhol (Cfr. Paulo Pitta e Cunha, Fisco n.º 119/121, Setembro 2005).

E, nesse âmbito, defendia-se que a exclusão das sociedades financeiras se afigurava lógica, na medida em que estas tinham como objecto habitual, entre outros, a actividade mutuária de meios financeiros, e tem por base o conteúdo da legislação específica aplicável às entidades financeiras, a qual as obriga a manter um determinado volume de recursos próprios em relação aos investimentos que realizem e os riscos que assuma, sob a supervisão de organismos estatais.

De facto, no caso de entidades financeiras, e para além da supervisão comportamental, cabe ao BdP, no exercício das prerrogativas de supervisão prudencial, supervisionar, nomeadamente, a solvabilidade e liquidez das instituições financeiras (artigo 94.º sgs do D.L. 298/92).

E precisamente por este motivo que não faria sentido aplicar-lhes, em sentido dissonante, restrições ou condicionantes de índole fiscal, relacionadas com políticas de financiamento, tais como as previstas no artigo 67.º CIRC.

É este, portanto, e apenas este, parece-nos, o motivo que subjaz à exclusão das “entidades supervisionadas pelo Banco de Portugal” do âmbito subjectivo da norma.

Aliás, o mesmo se aplica às entidades supervisionadas pela Autoridade de Supervisão de Seguros - que zela igualmente pela verificação da situação de solvência, da constituição de provisões técnicas, dos ativos e dos fundos próprios elegíveis das empresas de seguros e de resseguros (artigo 21.º da Lei n.º 147/2015).

Diferentemente, no que respeita aos intermediários financeiros, e como resulta do artigo 9.º do D.L. n.º 81-C/2017, a actuação do BdP é meramente uma supervisão comportamental (e não prudencial) – Vgr. conceder a autorização para o exercício da atividade de intermediário de crédito e revogá-la, fiscalizar o cumprimento do regime jurídico; apreciar as reclamações apresentadas por consumidores relativamente a intermediários de crédito, etc.

Aliás, como resulta do mesmo artigo 9.º , a supervisão do BdP abrange igualmente os prestadores de serviços de consultoria sem propósito comercial, no contexto de serviços públicos ou voluntários de consultoria de gestão de dívida – o que julgo reforçar a ideia de que a finalidade da exclusão prevista no artigo 67.º n.º 11 do CIRC não está minimamente em causa.

Em suma, embora literalmente o artigo 67.º n.º 7 do CIRC se refira a entidades sujeitas a supervisão do BdP – o que, em tese, inclui os “intermediários financeiros” -  julgo ser inequívoco da ratio da norma que tal supervisão, determinante da exclusão do regime, se refere apenas às entidades sujeitas a uma supervisão prudencial – dado ser a única que se relaciona com a imposição e controlo de pressupostos tais como capital social, fundos próprios, reservas, liquidez ou solvabilidade, os quais estão intrinsecamente relacionados com as opções de financiamento e, por conseguinte, das inerentes consequências, para efeitos fiscais, dos gastos de financiamento.

Tal não será, no entanto, o caso dos meros “intermediários financeiros”.


 Juros de mora nas dívidas tributárias - haverá limite para a falta de limite?


Estabelecia o artigo 44.º 2 da LGT, com a redacção dada pelo n.º 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28.04, que:

«O prazo máximo de contagem de juros de mora é de três anos, salvo nos casos em que a dívida tributária seja paga em prestações, caso em que os juros de mora são contados até ao termo do prazo de respectivo pagamento, sem exceder oito anos.».

Todavia, o artigo 149.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, veio atribuir ao aludido artigo 44.º n.º 2 da LGT a redacção segundo a qual «Os juros de mora aplicáveis às dívidas tributárias são devidos até à data de pagamento da dívida.”.

Ora, o vencimento de juros de mora sem qualquer limite temporal, pelo facto de o Contribuinte pretender exercer os seus direitos de defesa e, por conseguinte, não ter no seu domínio o tempo de pendência dos mecanismos legais destinados a assegurar a tutela de tais garantias de tutela, afigura-se manifestamente desproporcionado.

Convirá ter em consideração o que estatui o D.L. n.º 49.168, de 05.08.1969, que regula o regime dos juros de mora das dívidas ao Estado, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 73/99, de 16.03, mormente o disposto artigo 1.º. n.º 1 a) deste último diploma, no sentido de que “São sujeitas a juros de mora as dívidas ao Estado (…), seja qual for a forma de liquidação e cobrança, provenientes de: contribuições, impostos, taxas e outros rendimentos pagos depois do prazo de pagamento voluntário.».

Em consonância, estabelecem os artigos 44.º n.º 1 da LGT e 86.º n.º 1 do CPPT que, uma vez decorrido o prazo legal de pagamento da dívida tributária, começam a vencer-se juros de mora.

De igual modo, estabeleciam os artigos 6.º do D.L. n.º 49/168 e 4.º n.º 1 do D.L. n.º 73/99, quanto às regras de contagem dos juros de mora nas dívidas ao Estado, que «A liquidação de juros de mora não poderá ultrapassar os últimos cinco anos anteriores à data do pagamento da dívida sobre que incidem.». 

Por conseguinte, na prática, e em função do disposto no artigo 44.º n.º 2 da LGT, os juros de mora vencidos em função da pendência de meios legais de reacção não têm qualquer limite de contagem.

Todavia, em sentido diametralmente oposto, a LGT havia encurtado o prazo de vencimento de juros de mora quanto a dívidas tributárias por confronto ao prazo geral de vencimento de juros de mora sobre outras dívidas ao Estado.

De resto, o estabelecimento de um prazo limite de contagem de juros de mora, como o previsto no pretérito artigo 44.º n.º 2 da LGT, constituía uma garantia dos contribuintes vigente no nosso ordenamento jurídico durante mais de quarenta anos – dado que, como se disse, defluía do regime estabelecido pelo D.L. n.º 49.168 para as dívidas ao Estado – e, inclusivamente, foi encurtado pela LGT.

Ora, nos casos em que o Contribuinte decide encetar os meios de reacção contra os actos tributários e simultaneamente se prontifica a prestar uma garantia idónea à Fazenda Pública, para além do cumprimento dos (curtos) prazos intercalares no procedimento (vg. audição prévia) ou no processo tributário (alegações escritas), não domina ou intervém na celeridade ou demora da decisão final.

Nesta medida, afigura-se que o artigo 44.º n.º 2 da LGT, ao estatuir o vencimento de juros de mora sine die, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que, mercê da demora na resolução dos litígios tributários, quer administrativos, quer judiciais, o contribuinte vê-se compelido a suportar juros por uma mora que objectivamente não lhe é imputável e cujo vencimento não consegue minimamente determinar.

Por outro lado, a redacção em causa do artigo 44.º n.º 2 da LGT aplica-se, por força do disposto no artigo 151.º n.º 2 da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12, a todos os processos de execução fiscal que se encontrassem pendentes à data de entrada em vigor da lei. Ou seja, e na realidade, a aludida alteração legislativa pretende aplicar-se, retroactivamente, a processos executivos onde inclusivamente já se havia completado o prazo limite de contagem de juros de mora.

As normas que estabelecem a exigibilidade de juros de mora devem estar sujeitas ao mesmo regime que regulamenta o pagamento do capital sobre o qual são computados – ou seja, os impostos – não podendo aplicar-se retroactivamente, quer por força do artigo 103.º n.º 3 da Constituição, quer por força do artigo 12.º, n.º 1 da LGT.    

É certo que o facto que constitui a divida de juros moratórios, e que serve de base à sua liquidação, é o decurso do tempo em situação de incumprimento da obrigação de pagamento do imposto, pelo que estaremos perante um facto tributário de formação sucessiva. Ora, o artigo 12.º n.º 2 da LGT estatui que, quando a lei determine uma nova taxa de juros de mora, ela seja aplicável ao período de tempo decorrido na sua vigência.

Considerando que a obrigação derivada da mora é uma obrigação integrada, de forma indissolúvel, na obrigação de imposto inicial, o contribuinte não está perante duas obrigações distintas, mas apenas uma única obrigação tributária alterada quanto ao seu objecto – pois passou a compreender, além da dívida inicial, aquela que se e exige a título de juros moratórios.

Ora, no caso vertente, sendo certo que não está uma alteração da taxa de juro mas, outrossim, a revogação do período máximo de contagem e a aplicação retroactiva a dívidas tributárias vencidas antes da entrada em vigor da lei, a aplicação de lei nova aos efeitos de uma relação constituída ao abrigo da lei antiga, representa uma nova valoração do facto passado que, portanto, se afigura ter carácter retroactivo.

Essa diferente valoração é evidenciada não só pelo recorte legal dos juros de mora por dívidas ao Estado mas, também, pelas próprias circunstâncias determinantes das decisões que o devedor se vê na contingência de tomar até à data limite de pagamento da dívida tributária.

É que, aquando do vencimento daquela divida, o contribuinte, pretendendo exercer os seus direitos de defesa contra o acto tributário exequendo, teve necessariamente de ponderar entre duas opções: i) efectuar o pagamento da dívida tributária e, posteriormente, com a procedência do meio de reacção, solicitar a restituição do imposto acrescida de juros indemnizatórios, ou; ii) prestar garantia idónea e, posteriormente, com a procedência do meio de reacção, solicitar a indemnização pelos correspondentes encargos.

Ora, quando o contribuinte opta pela prestação de garantia, seguramente ponderou que continuariam a vencer-se juros moratórios, independentemente do processo executivo se encontrar suspenso no decurso do meio de reacção, mas igualmente considerou, nesse mesmo momento, que a divida tributária venceria juros de mora com o limite legal de três anos.

De resto, o regime em causa acarreta uma dupla penalização para o Contribuinte, dado que, com a demora na resolução dos litígios tributários, se vê na contingência de suportar igualmente, sine die, os encargos relacionados com a manutenção das garantias prestadas ao órgão de execução fiscal.

Sendo certo que não existe garantia de imutabilidade da lei fiscal, é igualmente certo que o contribuinte, quando confrontado com um regime legal de limitação de vencimento de juros de mora, se opta por não proceder ao pagamento do tributo e, em lugar disso, decide prestar uma garantia, não pode, ulteriormente, ser confrontado com a exigência de juros de mora sobre uma dívida vencida em momento anterior à entrada em vigor da nova lei, sobretudo, quando havia cessado a contagem de juros de mora segundo a lei antiga.

É necessário ter em conta que, quando os contribuintes tomam decisões, definem rumos ou afinam estratégias, fazem-no tendo em conta o concreto enquadramento factual e jurídico dessas decisões no seu preciso momento, projectado para o futuro os resultados e consequências que legitimamente podem antever, face às concretas circunstâncias em que tomaram aquelas decisões.

Nestes termos, segundo o princípio da segurança jurídica e da consequente não retroactividade, o regime aplicável deverá ser o vigente à data da verificação do correspondente pressuposto – que, no caso dos juros de mora, corresponde à data limite de pagamento do tributo a partir da qual são devidos.

De igual modo, afigura-se evidente que a norma legal em causa é manifestamente desequilibrada, desconforme e desadequada à prossecução do fim legal.

Segundo o critério de inadequação constata-se que, na dimensão normativa atribuída, a regulamentação do artigo 44.º n.º 2 da LGT é absolutamente desconforme ao fim visado porquanto, desde logo, o referencial de cômputo da mora não tem qualquer relação ou nexo de imputação a um comportamento ou acção do devedor tributário.

Tudo isto deflui no preenchimento da dimensão da desnecessidade, porquanto se afigura evidente a existência de meio adequado alternativo para alcançar o fim visado – com a devida e adequada ponderação dos interesses em causa, tanto da parte do devedor, como da parte do credor – o qual era constituído, precisamente, pelo estabelecimento de um limite ao vencimento dos juros moratórios.

Com efeito, à consagração de tal limite subjazia a ponderação de que o prazo de três anos seria razoável para resolução do procedimento e/ou processo tributário subjacentes à liquidação exequenda.

De resto, tal limite de contagem de juros de mora, de três anos, tinha inclusivamente uma justificação razoável face à consagração expressa, no artigo 96.º n.º 2 do CPPT, de que, para cumprir em tempo útil a tutela jurisdicional efectiva, o processo de impugnação judicial não deverá ter uma duração acumulada superior a dois anos.

De igual modo, a redução do prazo limite de vencimento de juros de mora – dos cinco anos previstos no D.L. n.º 73/99, para os três anos no pretérito artigo 44.º n.º 2 da LGT – encontrava justificação na circunstância de a dívida tributária ser auto-titulada.

Com efeito, a obrigação fiscal é dotada de uma verdadeira natureza executiva, beneficiando da presunção de legalidade dos actos administrativos, na medida em que a sua execução não está dependente de qualquer outra pronúncia, mormente judicial, para além da constituída pelo próprio acto tributário[1].

Vale isto por dizer que a certidão de dívida emitida pela AT – que, nos termos da lei, constitui o título executivo com base no qual é encetada a cobrança coerciva – é dotada, ope legis, de especial força constitutiva.

Nessa medida, a correspondente obrigação de pagamento da dívida tributária é determinada pela própria entidade exequente com base nos títulos executivos que emite nos termos do artigo 88.º do CPPT.

Do exposto resulta, desde logo, que por força da executoriedade imediata do título, o credor tributário encontra-se numa posição privilegiada face aos demais credores e demais dívidas, inclusivamente do Estado.

Com efeito, «Ao contrário dos sujeitos privados que só podem alterar o “status quo”, a situação de facto existente, recorrendo aos tribunais, a Administração pode “fazer justiça com as próprias mãos”, quer declarando o direito, quer fazendo-o executar»[2].

E foi também esta posição privilegiada da AT, quanto à cobrança coerciva de dívidas tributárias, que justificou a redução do prazo limite de vencimento de juros moratórios relativamente às demais dívidas ao Estado.

Mostra-se, assim, claramente preenchida a dimensão de desproporcionalidade, no sentido de inadequação entre o fim visado e a imposição tributária – face à total inexistência de uma qualquer relação entre o vencimento de juros moratórios, na sua estrita configuração pelo legislador, e o pressuposto do atraso no cumprimento da obrigação tributária.

É que, como se referiu, o Contribuinte vê-se onerado com juros de mora sem qualquer limite temporal, até decisão definitiva do litígio tributário, quando o atraso nessa resolução não lhe é minimamente imputável.

Aliás, sempre que a demora na resolução do litígio tributário – mormente em sede procedimental - se prenda com a inação ou facto imputável à AT poderia mesmo considerar-se que, em rigor, a mora seria imputável ao próprio credor e, portanto, a dívida deixaria de vencer juros[3]...

De facto, paralelamente, o vencimento de juros depende “de uma actuação do sujeito passivo, ela é limitada ao período de privação daquela que é imputável a tal actuação, deixando de existir a partir do momento em que haja uma acção ou omissão da Administração Tributária que possa considerar-se como causa de um prolongamento dessa privação[4].

Deste modo se divisa que, na aludida dimensão de desnecessidade, e quando muito, o legislador deveria ter sopesado a existência de um equilíbrio mínimo entre as posições relativas das partes – credor e devedor – estabelecendo, pelo menos, um critério uniforme a todas as dívidas ao Estado.

Em concreto, e não perdendo de vista que o legislador consagrou nas dívidas tributárias uma redução do prazo de contagem dos juros moratórios, o legislador poderia ter estabelecido um critério uniforme de limitação de contagem de juros de mora de cinco anos.

Bem ao invés, em lugar de limitar a contagem de juros moratórios nas situações em que, à partida, é sabido que a inerente dilação de resolução dos litígios tributários – e, portanto, o atraso na cobrança da quantia exequenda – não pode ser imputável ao Contribuinte, o legislador acabou por estabelecer, desproporcionadamente, uma regra que materializa a exigência de juros a um Contribuinte por uma mora que não domina e que não lhe é imputável.

Note-se, ademais, que não relevam nesta sede as situações patológicas em que o Contribuinte decide prevalecer-se do procedimento gracioso como expediente dilatório – na medida em que, para esses casos, a lei já estabelece, como sanção, um agravamento da colecta[5].

O mesmo sucede no processo tributário, com o sancionamento em multa por litigância de má-fé[6].

Caberia assim ao legislador sopesar os motivos que levaram a que fosse consagrada no nosso ordenamento jurídico, com extrema perenidade, uma regra de limitação à contagem de juros de mora, como lhe caberia também ponderar as circunstâncias que, actualmente, imporiam, quando muito, a consagração de um regime inverso ao que consta no actual artigo 44.º n.º 2 da LGT.

Caso o tivesse feito, teria certamente concluído que não subsiste qualquer fundamento material que justifique a consagração de uma mora ilimitada sem o inerente nexo de imputação subjectivo.

Muito pelo contrário, as razões que presidiram ao estabelecimento de um limite à contagem de juros de mora encontram-se hoje, mais do que nunca, reforçadas.

Efectivamente, ao estabelecer no artigo 6.º do D.L. n.º 49.168 um regime de limitação de contagem de juros de mora nas dívidas ao Estado – ulteriormente actualizado pelo D.L. n.º 73/99 – o legislador pretendeu evitar que o credor retardasse a exigência do crédito, tornando demasiado onerosa a prestação do devedor.

De resto, conforme se referiu, a limitação de contagem de juros de mora, de cinco anos, passou, na LGT, a ser reduzida a três anos.

Como refere a nossa melhor Doutrina[7], «No específico caso das dívidas tributárias, compreende-se mesmo que haja uma redução maior do que a que se prevê para as obrigações em geral, desde logo por uma razão de proporcionalidade, por a Administração Tributária dispor de meios legais e materiais que lhe permitem a cobrança das dívidas de que é credora, se necessário coercivamente através de um processo executivo simplificado e mais célere que o processo executivo comum, para o qual a lei estabelece como duração desejável o prazo de um ano (art. 177.º do CPPT). A administração tributária é a única credora que tem também a faculdade de instaurar e fazer prosseguir pelos seus próprios meios a cobrança coerciva, o que é uma boa razão para a lei ser mais exigente em relação a ela do que o é em relação à generalidade dos credores (…)».

Mais conclui: «É em sintonia com estas considerações que se insere a limitação de contagem de juros a três anos, prevista no art. 44.º, n.º 2, da LGT para as dívidas tributárias, que é maior do que a que, ao tempo em que foi emitida a LGT, resultava do art. 6.º do D.L. n.º41968, de 5/8/1969, para a generalidade das dívidas a entidades de direito público.»[8].

Ora, como é sabido, actualmente a instauração e tramitação dos processos de execução fiscal é efectuada exclusivamente através de meios informáticos e de forma virtualmente automática – o que veio a substituir, em grande medida, as tarefas que, por regra, eram efectuadas manualmente pelos funcionários da AT[9].

Destarte, e quando muito, estão indiscutivelmente reforçadas as razões que levaram a consagração de uma regra de limitação à contagem de juros de mora nas dívidas tributárias – mormente pela redução do prazo de vencimento relativamente às demais dívidas ao Estado.

Daqui decorre a manifesta desproporcionalidade da norma em crise e do regime actualmente em vigor, atenta a manifesta inconstitucionalidade material do preceito legal em que se suporta.

É que, por força da alteração introduzida à redacção do artigo 44.º n.º 2 da LGT, independentemente da inércia administrativa na cobrança da dívida tributária, e da circunstância de a demora na decisão administrativa ou judicial do litígio tributário não ser imputável ao Contribuinte, este será sempre confrontado com o vencimento continuado, e sem qualquer limite, de juros moratórios.

Não se vislumbra um lastro mínimo de proporcionalidade em tal normação, na medida em que a mesma implica, necessariamente, uma grave e injustificada compressão dos direitos dos Contribuintes, que se veem responsabilizados por uma mora que, na realidade, lhes é alheia. Outrossim, o vencimento de juros de mora e o concomitante avolumar da dívida tributária no âmbito do procedimento tributário estão à mercê da própria AT – mormente pelo atraso na tramitação e decisão do meio procedimental onde se discuta a legalidade da dívida exequenda.

De igual modo, caso o Contribuinte opte por reagir judicialmente contra a liquidação exequenda, e atendendo à elevada pendência nos tribunais fiscais, o simples acesso à tutela jurisdicional implica, por si só, o avolumar da dívida tributária através do vencimento indefinido e ilimitado de juros moratórios.

Neste contexto, em virtude da conhecida (e compreensível) demora na resolução judicial dos litígios fiscais, é fácil antever que, com o mero acesso aos Tribunais, o Contribuinte verá aumentar desmesurada e ilimitadamente a dívida tributária – ainda que em nada concorra para tal demora – o que é claramente desmotivador, e até penalizador, desse acesso.

 

 

 



[1] Cfr. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, Almedina, 1972, p. 412

[2] Cfr. Rui Machete, A Execução do Acto Administrativo, “Direito e Justiça”RFDL, UCP, Vol VI, 1992, p. 82.

[3] Cfr. Art. 814.º n.º 2 do Cód. Civ.

[4] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, “Juros nas Relações Tributárias”, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis Editores, 1999. p. 146.

[5] Cfr. art. 77.º n.º 1 CPPT.

[6] Cfr. Art. 104.º n.º 2 LGT.

[7] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Sobre a prescrição da obrigação tributária, 2.ª Ed., Àreas, p. 147.

[8] Idem.

[9] Cfr. Relatório n.º P-0007/06(A2) da Provedoria de Justiça, Inspecção aos Serviços de Finanças – Execuções Fiscais, in https://www.provedor-jus.pt/documentos/RelatorioInspeccaoServicosFinancas_ExecucoesFiscais.pdf.

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