segunda-feira, fevereiro 23, 2015

Alteração das alçadas nos processos fiscais

A Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2015 veio introduzir uma nova redacção ao artigo 105.º da LGT, estabelecendo-se agora que "A alçada dos tribunais tributários corresponde àquela que se encontra estabelecida para os tribunais judiciais de 1.ª instância."

1. - A redacção anterior deste normativo estabelecia que “A lei fixará as alçadas dos tribunais tributários, sem prejuízo da possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, em caso de este visar a uniformização das decisões sobre idêntica questão de direito.”
Ou seja, a redacção dada pela LOE 2015 veio apenas definir a alçada dos tribunais tributários de primeira instância, deixando para o CPPT a regulamentação dos casos em que é possível o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
Nos termos do artigo 31.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, com a redacção dada pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, a alçada dos tribunais judiciais de primeira instância é de €5.000,00.
Assiste-se, deste modo, a um significativo aumento da alçada e, portanto, da possibilidade geral de recurso ordinário – já que anteriormente, nos termos do artigo 280.º n.º 4 do CPPT, apenas não cabia recurso das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância proferidas em processo de impugnação judicial ou de execução fiscal quando o valor da causa não ultrapassasse um quarto das alçadas fixadas para os tribunais judiciais de primeira instância (artigo 6.º, n.º 2 ETAF) – ou seja, €1.250,00.
Ora, embora se trate aqui de replicar a alçada dos tribunais de primeira instância, haverá de notar-se que o contencioso tributário tem características específicas que impunham também uma ponderação diferenciada – o que não sucedeu.
Em primeiro lugar, está em causa um verdadeiro contencioso de reacção - na medida em que, por força do acto tributário, o contribuinte é colocado na contingência de encetar um procedimento/processo adequado para reagir contra a ilegalidade/inexigibilidade do imposto.
Em segundo lugar, está em causa um contencioso marcadamente determinado pela natureza do acto tributário impugnado graciosa ou contenciosamente – sobretudo no que tange ao seu quantitativo.
Ao estabelecer anteriormente uma alçada no montante de €1.250,00, o legislador certamente compreendeu esta especificidade do contencioso tributário, pretendendo, desse modo, facilitar o acesso à justiça tributária – sendo que a obrigatoriedade de constituição de advogado apenas nas causas que ultrapassassem dez vezes a alçada do tribunal de primeira instância milita também nesse sentido.
Com efeito, a obrigação fiscal é dotada de uma verdadeira natureza constitutiva, quer porque beneficia da presunção de legalidade própria dos actos administrativos, quer porque a sua execução não está dependente de qualquer outra pronúncia prévia, mormente judicial, para além da constituída pelo próprio acto tributário de liquidação.
De acordo com a regra agora vigente, corre-se o (evidente, mas evitável) risco de distinguir a tutela jurisdicional efectiva – mormente a decorrente da concessão/negação da garantia ao recurso jurisdicional – consoante se trate de um contribuinte pessoa individual ou pessoa colectiva ou, pior do que isso, consoante a quantia de imposto em causa. Bastará, naturalmente, ponderar o peso relativo que uma liquidação de imposto no montante de €5.000,00 pode ter para uma pessoa colectiva e para um contribuinte individual.
Por outro lado, o estabelecimento da regra em causa condiciona mesmo, à partida, a natureza dos actos tributários cuja legalidade pode ser judicialmente sindicada. Atente-se, por exemplo, às colectas de imposto municipal sobre imóveis, imposto único de circulação, ou imposto de selo – que, na maior parte dos casos, não ultrapassam o valor de €5.000,00.
Tomando por referência o Relatório de Combate à Fraude e Evasão Fiscal da Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais quanto ao ano de 2014, é possível perceber, por exemplo, que 35% dos processos em contencioso administrativo respeitavam, precisamente, a imposto de selo, imposto municipal sobre imóveis e imposto único de circulação. Ora, a consideração de que, nos termos do mesmo relatório, 65% dos recursos hierárquicos são indeferidos, permite concluir que as questões acabam por ser dirimidas em sede judicial – e, por força do supra referido, sem possibilidade de recurso.


2 - Em consonância com a definição da alçada, pelo artigo em anotação, estabelece agora o artigo 280.º n.º 4 do CPPT, com a redacção dada pela LOE 2015, que não cabe recurso das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância proferidas em processo de impugnação judicial ou de execução fiscal quando o valor da causa não ultrapassar o valor da alçada fixada para os tribunais tributários de 1.ª instância.
Assim, pese embora no CPPT seja cumprido o desígnio de estabelecimento de alçadas nos processos tributários, acabou por apenas consagrar a impugnação judicial e os processos de oposição, reclamação de actos e decisões do órgão de execução, embargos, e reclamação de créditos (ou seja, os meios processuais relacionados com o processo executivo) deixando de fora, por exemplo, o "recurso contencioso" - ou seja, a acção administrativa especial estabelecida no artigo 97.º, n.º 1, alínea p) do CPPT e 46.º seg.s do CPTA.

3. - A existência de alçadas não obsta a que haja lugar a recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisões que perfilhem solução oposta relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica, com mais de três sentenças do mesmo ou de outro tribunal de igual grau (Tribunal Administrativo e Fiscal), ou com uma decisão de tribunal de hierarquia superior (Tribunal Central Administrativo e Supremo Tribunal Administrativo).
Das decisões de impugnação de actos tributários, de actos em matéria tributária e de actos administrativos respeitantes a questões fiscais que sejam da competência em primeira instância dos Tribunais Administrativos e Fiscais, cabe recurso para a 2.ª secção do Tribunal Central Administrativo, ou recurso "per saltum" para a 2.ª secção do Supremo Tribunal Administrativo quando o fundamento do recurso for exclusivamente matéria de direito [artigos 280.º do CPPT, 26.º, alínea b) e 38.º, a) do ETAF]. A alçada do Tribunal Central Administrativo corresponde à alçada do Tribunal da Relação, ou seja €30.000,00 (artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 46/2011).


4. – Estatui o artigo 6.º n.º 1 CPPT, com a redacção dada pela LOE 2015, que é obrigatória a constituição de advogado nas causas judiciais cujo valor exceda o dobro da alçada do tribunal tributário de 1.ª instância, bem como nos processos da competência do Tribunal Central Administrativo e do Supremo Tribunal Administrativo. Ou seja, por referência ao normativo em anotação, e em termos gerais, apenas será obrigatória a constituição de advogado nas causas superiores a €10.000,00 – sendo que a regra até agora vigente obrigava à constituição de advogado nas causas judiciais cujo valor excedesse o décuplo da alçada do tribunal tributário de 1.ª instância (bem como nos processos da competência do Tribunal Central Administrativo e do Supremo Tribunal Administrativo) – ou seja €12.500,00.
Trata-se de uma regra que não tem paralelo nem no contencioso civil, nem no contencioso administrativo e que materializa o desígnio legislativo de facilitar o acesso à justiça tributária.
Diferentemente, o art. 11.º, n.º 1 do CPTA, exige a constituição de advogado em todos os processos do contencioso administrativo, o que suscita a questão de saber se, no “recurso contencioso” referido no artigo 97.º n.º 1 p) do CPPT - ou seja, a acção administrativa especial em matéria tributária - é ou não obrigatória a constituição de advogado.
Trata-se de mais uma, de entre várias incongruências e incompatibilidades entre o contencioso administrativo e o contencioso tributário, considerando que ainda não foi efectuada a (necessária) reforma, revisão e adaptação conjunta.
De todo o modo, o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 24 de Setembro de 2008, dado no processo n.º 0175/07, sufragou o entendimento de que não faria sentido dispensar a constituição de advogado no âmbito da impugnação judicial, da reclamação, do recurso hierárquico e mesmo da oposição, e exigir esse pressuposto na acção administrativa especial em matéria de direito tributário, quando o desígnio que está em causa é o mesmo.

5.- As regras relativas à fixação do valor da causa nos processos tributários encontram-se actualmente no art. 97.º-A do CPPT. Em geral, nos termos do n.º 1 do referido preceito, o valor da causa corresponde ao do acto impugnado – concretamente: quando seja impugnada a liquidação, o valor que se pretende anulado (alínea a); quando seja impugnado o acto de fixação da matéria colectável, o valor contestado (alínea b); quando seja impugnado o acto de fixação de valores patrimoniais, o valor contestado.
Ora, nos casos estabelecidos na alínea b, constata-se que, para efeito de determinação do valor da causa, podem estar em causa as mesmas correcções fiscais, em termos quantitativos, mas um diferente valor da causa – tanto para efeito de determinação da alçada, quer para efeito de custas.
Basta atentar às situações em que, malgrado a Administração Tributária proceder a avultadas correcções à matéria colectável, tais correcções não deram origem a qualquer imposto a pagar (art. 97.º n.º 1 b) do CPPT), considerando, por exemplo, a existência de prejuízos fiscais reportáveis. Nestas circunstâncias, o valor da causa corresponderia, portanto, ao valor das próprias correcções impugnadas. Agora pense-se numa situação em que, relativamente a outro Contribuinte, a Administração Tributária procede às mesmíssimas correcções à matéria colectável mas, desta feita, porque o Contribuinte não tinha prejuízos fiscais reportáveis ou os existentes apenas tinham um impacto parcial, era gerada uma liquidação de imposto a pagar. Nesta última hipótese, e embora, reitera-se, estivesse em causa a mesma quantificação da matéria colectável, o valor da causa corresponderia ao valor da liquidação – que, como é bom de ver, é muitíssimo inferior ao valor das correcções que a geraram.
Neste caso, o Tribunal é chamado a sindicar a legalidade das mesmas correcções, eventualmente decorrentes de um semelhante procedimento inspectivo, mas o valor da acção para efeito de alçada e para efeito de custas seria diametralmente diferente. Vale isto por dizer que, embora o labor do Tribunal seja exactamente o mesmo e o objecto do processo seja também semelhante, num caso o Contribuinte poderá interpor recurso da decisão do Tribunal de primeira instância, já que o valor do processo corresponde ao valor das próprias correcções, enquanto que a outro Contribuinte está vedada a possibilidade de recurso, na medida em que o valor do processo corresponde à liquidação gerada.
Haverá de considerar-se, igualmente, os processos judiciais onde se pretenda sindicar a legalidade da determinação do valor patrimonial tributário de um imóvel, considerando que tal valor constitui base de incidência do IMI.
Nestes casos, e nos termos da lei, o Contribuinte apenas poderá colocar em causa, contenciosamente, a determinação daquele valor patrimonial, depois de esgotados os meios graciosos previstos (Cfr. art. 134.º n.º 7 do CPPT) – sendo que, por exemplo, a ulterior impugnação judicial não tem efeito suspensivo quanto à liquidação de IMI (Cfr. art. 118.º n.º 1 do CIMI).
Trata-se, portanto, de uma questão similar à da impugnação da determinação da matéria colectável, quando não dê origem a qualquer liquidação.
A este respeito, e conforme é entendimento da nossa melhor doutrina: “Nos casos em que é impugnado directamente o acto de fixação da matéria colectável, referidos na alínea b) do nº 1 do art. 97º-A, o benefício que se pretende obter não é equivalente ao “valor contestado”, adoptado como critério de fixação do valor, mas sim ao imposto que deixaria de ser cobrado com a alteração do valor da matéria colectável contestado, que será sempre muito menor que aquele.» (Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª Edição, 2011, Áreas Editora, p. 73).
Daí que, como refere o mesmo autor, «(…) em coerência com a opção legislativa subjacente à fixação do valor prevista na alínea a), deveria, nestas situações de impugnação de acto de fixação de matéria colectável, optar-se pela fixação do valor da acção em função do valor do imposto que estaria conexionado com a matéria colectável contestada.».
Assim, conclui, «Podem colocar-se, aqui, problemas de compatibilidade deste critério com o princípio constitucional da igualdade, já que a impugnação judicial de actos de fixação da matéria colectável em que está em causa a contestação de valor idêntico terá valor diferente para efeitos de tributação em custas, conforme seja ou não praticado um acto de liquidação, podendo suceder mesmo que a uma mais ampla impugnação corresponda menor valor da acção.
É, assim, de aventar a inconstitucionalidade material do critério utilizado na alínea b), à face do princípio constitucional da Igualdade (art. 13º da CRP).».
Por identidade de motivos, é de aventar a inconstitucionalidade material do preceito em causa, concatenado com a regra em anotação – por violação dos princípios da igualdade e da tutela jurisdicional efectiva – quando, nas situações referidas, se constate que fica inviabilizada a possibilidade de recurso.


6. - Note-se que, no regime da arbitragem tributária instituído pelo Decreto – Lei n.º 10/2011, de 20.01.2011, embora o valor do processo para efeito de custas arbitrais seja determinado nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, estatui artigo 3.º n.º 3 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, por remissão para o artigo 2.º n.º 1 b) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, que nos casos de declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais, o valor da causa será o da liquidação a que se pretende obstar. Assim, por exemplo, quando se impugna a determinação de um valor patrimonial tributário, de acordo com as regras plasmadas na alínea c) do n.º 1 do artigo 97.º-A CPPT, o valor da impugnação corresponde ao valor contestado. Logo, se bem se intui o sentido do regime em causa, quando se pretenda contestar o valor patrimonial pelo efeito que o mesmo vai surtir numa liquidação de IMI, constata-se que, no processo arbitral – ao invés do que sucede no processo de impugnação judicial - será o valor da liquidação a constituir o critério para definição do valor do processo e das custas.

7. - O artigo 225.º da LOE 2015 estabelece uma disposição transitória no âmbito do procedimento e processo tributário, referindo que as alterações introduzidas pela presente lei às normas do CPPT e da LGT sobre alçadas e constituição de advogados apenas produzem efeitos relativamente aos processos que se iniciem após a sua entrada em vigor – o que está em consonância com o artigo 6.º, n.º 6 do ETAF, quando estatui que valor a considerar para efeito de alçada é aquele que vigorar à data da propositura da acção.



3 Comments:

Blogger Ricardo said...

Bom dia,
Peço desculpa se me estiver a repetir - ontem coloquei uma questão num post e como não aparece, talvez não o tenha feito bem.
Foi com prazer que descobri o seu blog, que aborda questões bastante interessantes e pertinentes - pelo que o incentivo a continuar.
Existe uma questão que fico sem conseguir resolver, no entanto. Como resolver o conflito resultante da existência em paralelo de 2 dispositivos legais contraditórios?
Tanto o art. 105º da LGT como o art. 6º/2 do ETAF versam sobre o valor da alçada - e ambos estão em vigor. Aplicar-se-à o principio da lex specialis - sendo que a LGT cederia passo ao CPPT? Ou presume-se a revogação do preceito do ETAF por lei posterior? E a manutenção do art. 6º/2 no sistema jurídico é uma anomalia por inércia do legislador?

Agradeço a atenção e desejo-lhe as maiores felicidades

quarta-feira, 06 abril, 2016  
Blogger Rui Ribeiro Pereira said...

Caro Ricardo,

Muito obrigado pelas simpáticas palavras.
De facto, essa é uma das incongruências que, como refiro, resultam da falta de compatibilização sistemática dos diplomas em causa.
Entre a LGT e o CPPT, o primeiro diploma tem prevalência sobre o segundo - como resulta do próprio preâmbulo do CPPT e, bem assim, do seu artigo 1.º.
A contradição latente (e frontal) é, na verdade, entre o ETAF e a LGT.
Penso que terá sido (mais um) descuido do legislador, que apenas pode ser resolvido, na minha opinião, pela revogação tácita da regra constante no artigo 6.º do ETAF - na medida em que a vigência da lei nova materializa a vontade mais recente do legislador, incompatível com a vigência da lei antiga, como resulta da aplicação dos critérios definidos no artigo 7.º do Código Civil.

Cumprimentos.

quarta-feira, 06 abril, 2016  
Blogger Ricardo said...

Bom dia,
Agradeço-lhe a resposta. Acrescento um Acórdão recente de que tomei conhecimento no entretanto.

http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2bee42433b33a6b580257f7e004334be?OpenDocument&Highlight=0%2Cetaf%2Cdulce%2Cneto

São estas falhas (graves e de brio) que fazem com não possamos deixar de concordar com as palavras de Casalta Nabais (in Direito Fiscal) quanto à "turboprodução" legislativa e com a "falta de qualidade técnica" da produção normativa.

Os meus melhores cumprimentos.

quarta-feira, 13 abril, 2016  

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