Alteração das alçadas nos processos fiscais
A Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2015 veio introduzir uma nova redacção ao artigo 105.º da LGT, estabelecendo-se agora que "A alçada dos tribunais tributários corresponde àquela que se encontra
estabelecida para os tribunais judiciais de 1.ª instância."
1. - A redacção anterior deste normativo estabelecia que “A lei fixará as
alçadas dos tribunais tributários, sem prejuízo da possibilidade de recurso
para o Supremo Tribunal Administrativo, em caso de este visar a uniformização
das decisões sobre idêntica questão de direito.”
Ou seja, a redacção dada pela LOE 2015 veio apenas definir a alçada dos
tribunais tributários de primeira instância, deixando para o CPPT a
regulamentação dos casos em que é possível o recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo.
Nos termos do artigo 31.º, n.º 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos
Tribunais Judiciais, com a redacção dada pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho,
a alçada dos tribunais judiciais de primeira instância é de €5.000,00.
Assiste-se, deste modo, a um significativo aumento da alçada e, portanto,
da possibilidade geral de recurso ordinário – já que anteriormente, nos termos
do artigo 280.º n.º
4 do CPPT, apenas não cabia recurso das decisões dos tribunais tributários de
1.ª instância proferidas em processo de impugnação judicial ou de execução
fiscal quando o valor da causa não ultrapassasse um quarto das alçadas fixadas
para os tribunais judiciais de primeira instância (artigo 6.º, n.º 2 ETAF) – ou
seja, €1.250,00.
Ora, embora se trate aqui de replicar a alçada dos tribunais de primeira
instância, haverá de notar-se que o contencioso tributário tem características
específicas que impunham também uma ponderação diferenciada – o que não
sucedeu.
Em primeiro lugar, está em causa um verdadeiro contencioso de reacção - na
medida em que, por força do acto tributário, o contribuinte é colocado na
contingência de encetar um procedimento/processo adequado para reagir contra a
ilegalidade/inexigibilidade do imposto.
Em segundo lugar, está em causa um contencioso marcadamente determinado
pela natureza do acto tributário impugnado graciosa ou contenciosamente –
sobretudo no que tange ao seu quantitativo.
Ao estabelecer anteriormente uma alçada no montante de €1.250,00, o
legislador certamente compreendeu esta especificidade do contencioso tributário,
pretendendo, desse modo, facilitar o acesso à justiça tributária – sendo que a
obrigatoriedade de constituição de advogado apenas nas causas que ultrapassassem
dez vezes a alçada do tribunal de primeira instância milita também nesse
sentido.
Com efeito, a obrigação fiscal é dotada de uma verdadeira natureza
constitutiva, quer porque beneficia da presunção de legalidade própria dos
actos administrativos, quer porque a sua execução não está dependente de
qualquer outra pronúncia prévia, mormente judicial, para além da constituída
pelo próprio acto tributário de liquidação.
De acordo com a regra agora vigente, corre-se o (evidente, mas evitável)
risco de distinguir a tutela jurisdicional efectiva – mormente a decorrente da
concessão/negação da garantia ao recurso jurisdicional – consoante se trate de
um contribuinte pessoa individual ou pessoa colectiva ou, pior do que isso,
consoante a quantia de imposto em causa. Bastará, naturalmente, ponderar o peso
relativo que uma liquidação de imposto no montante de €5.000,00 pode ter para
uma pessoa colectiva e para um contribuinte individual.
Por outro lado, o estabelecimento da regra em causa condiciona mesmo, à
partida, a natureza dos actos tributários cuja legalidade pode ser
judicialmente sindicada. Atente-se, por exemplo, às colectas de imposto
municipal sobre imóveis, imposto único de circulação, ou imposto de selo – que,
na maior parte dos casos, não ultrapassam o valor de €5.000,00.
Tomando por referência o Relatório de Combate à Fraude e Evasão Fiscal da
Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais quanto ao ano de 2014, é possível
perceber, por exemplo, que 35% dos processos em contencioso administrativo
respeitavam, precisamente, a imposto de selo, imposto municipal sobre imóveis e
imposto único de circulação. Ora, a consideração de que, nos termos do mesmo
relatório, 65% dos recursos hierárquicos são indeferidos, permite concluir que
as questões acabam por ser dirimidas em sede judicial – e, por força do supra
referido, sem possibilidade de recurso.
2 - Em consonância com a definição da alçada, pelo artigo em anotação,
estabelece agora o artigo 280.º n.º 4 do CPPT, com a redacção dada pela LOE
2015, que não cabe recurso das decisões dos tribunais tributários de 1.ª
instância proferidas em processo de impugnação judicial ou de execução fiscal
quando o valor da causa não ultrapassar o valor da alçada fixada para os
tribunais tributários de 1.ª instância.
Assim, pese embora no CPPT seja cumprido o desígnio de estabelecimento de
alçadas nos processos tributários, acabou por apenas consagrar a impugnação
judicial e os processos de oposição, reclamação de actos e decisões do órgão de
execução, embargos, e reclamação de créditos (ou seja, os meios processuais
relacionados com o processo executivo) deixando de fora, por exemplo, o
"recurso contencioso" - ou seja, a acção administrativa especial
estabelecida no artigo 97.º,
n.º 1, alínea p) do CPPT e 46.º seg.s do CPTA.
3. - A existência de alçadas não obsta a que haja lugar a recurso para o Supremo Tribunal Administrativo de decisões que perfilhem solução oposta relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica, com mais de três sentenças do mesmo ou de outro tribunal de igual grau (Tribunal Administrativo e Fiscal), ou com uma decisão de tribunal de hierarquia superior (Tribunal Central Administrativo e Supremo Tribunal Administrativo).
Das decisões de impugnação de actos tributários, de actos em matéria
tributária e de actos administrativos respeitantes a questões fiscais que sejam
da competência em primeira instância dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
cabe recurso para a 2.ª secção do Tribunal Central Administrativo, ou recurso
"per saltum" para a 2.ª secção do Supremo Tribunal Administrativo
quando o fundamento do recurso for exclusivamente matéria de direito [artigos 280.º do
CPPT, 26.º, alínea b) e 38.º, a) do ETAF]. A alçada do Tribunal Central
Administrativo corresponde à alçada do Tribunal da Relação, ou seja €30.000,00
(artigo 31.º, n.º 1 da Lei n.º 46/2011).
4. – Estatui o artigo 6.º n.º 1 CPPT, com a redacção dada pela LOE 2015,
que é obrigatória a constituição de advogado nas causas judiciais cujo valor
exceda o dobro da alçada do tribunal tributário de 1.ª instância, bem como nos
processos da competência do Tribunal Central Administrativo e do Supremo
Tribunal Administrativo. Ou seja, por referência ao normativo em anotação, e em
termos gerais, apenas será obrigatória a constituição de advogado nas causas
superiores a €10.000,00 – sendo que a regra até agora vigente obrigava à constituição
de advogado nas causas judiciais cujo valor excedesse o décuplo da alçada do
tribunal tributário de 1.ª instância (bem como nos processos da competência do
Tribunal Central Administrativo e do Supremo Tribunal Administrativo) – ou seja
€12.500,00.
Trata-se de uma regra que não tem paralelo nem no contencioso civil, nem no
contencioso administrativo e que materializa o desígnio legislativo de
facilitar o acesso à justiça tributária.
Diferentemente, o art. 11.º, n.º 1 do CPTA, exige a constituição de
advogado em todos os processos do contencioso administrativo, o que suscita a
questão de saber se, no “recurso contencioso” referido no artigo 97.º n.º 1 p)
do CPPT - ou seja, a acção administrativa especial em matéria tributária - é ou
não obrigatória a constituição de advogado.
Trata-se de mais uma, de entre várias incongruências e incompatibilidades
entre o contencioso administrativo e o contencioso tributário, considerando que
ainda não foi efectuada a (necessária) reforma, revisão e adaptação conjunta.
De todo o modo, o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal
Administrativo, no acórdão de 24 de Setembro de 2008, dado no processo n.º 0175/07,
sufragou o entendimento de que não faria sentido dispensar a constituição de
advogado no âmbito da impugnação judicial, da reclamação, do recurso
hierárquico e mesmo da oposição, e exigir esse pressuposto na acção
administrativa especial em matéria de direito tributário, quando o desígnio que
está em causa é o mesmo.
5.- As regras relativas à fixação do valor da causa nos processos
tributários encontram-se actualmente no art. 97.º-A do CPPT. Em geral, nos
termos do n.º 1 do referido preceito, o valor da causa corresponde ao do acto
impugnado – concretamente: quando seja impugnada a liquidação, o valor que se
pretende anulado (alínea a); quando seja impugnado o acto de fixação da matéria
colectável, o valor contestado (alínea b); quando seja impugnado o acto de
fixação de valores patrimoniais, o valor contestado.
Ora, nos casos estabelecidos na alínea b, constata-se que, para efeito de
determinação do valor da causa, podem estar em causa as mesmas correcções fiscais,
em termos quantitativos, mas um diferente valor da causa – tanto para efeito de
determinação da alçada, quer para efeito de custas.
Basta atentar às situações em que, malgrado a Administração Tributária proceder
a avultadas correcções à matéria colectável, tais correcções não deram origem a
qualquer imposto a pagar (art. 97.º n.º 1 b) do CPPT), considerando, por
exemplo, a existência de prejuízos fiscais reportáveis. Nestas circunstâncias,
o valor da causa corresponderia, portanto, ao valor das próprias correcções
impugnadas. Agora pense-se numa situação em que, relativamente a outro
Contribuinte, a Administração Tributária procede às mesmíssimas correcções à
matéria colectável mas, desta feita, porque o Contribuinte não tinha prejuízos
fiscais reportáveis ou os existentes apenas tinham um impacto parcial, era
gerada uma liquidação de imposto a pagar. Nesta última hipótese, e embora,
reitera-se, estivesse em causa a mesma quantificação da matéria colectável, o
valor da causa corresponderia ao valor da liquidação – que, como é bom de ver,
é muitíssimo inferior ao valor das correcções que a geraram.
Neste caso, o Tribunal é chamado a sindicar a legalidade das mesmas
correcções, eventualmente decorrentes de um semelhante procedimento inspectivo,
mas o valor da acção para efeito de alçada e para efeito de custas seria
diametralmente diferente. Vale isto por dizer que, embora o labor do Tribunal
seja exactamente o mesmo e o objecto do processo seja também semelhante, num
caso o Contribuinte poderá interpor recurso da decisão do Tribunal de primeira
instância, já que o valor do processo corresponde ao valor das próprias
correcções, enquanto que a outro Contribuinte está vedada a possibilidade de
recurso, na medida em que o valor do processo corresponde à liquidação gerada.
Haverá de considerar-se, igualmente, os processos judiciais onde se
pretenda sindicar a legalidade da determinação do valor patrimonial tributário
de um imóvel, considerando que tal valor constitui base de incidência do IMI.
Nestes casos, e nos termos da lei, o Contribuinte apenas poderá colocar em
causa, contenciosamente, a determinação daquele valor patrimonial, depois de
esgotados os meios graciosos previstos (Cfr. art. 134.º n.º 7 do CPPT) – sendo que, por exemplo, a ulterior impugnação
judicial não tem efeito suspensivo quanto à liquidação de IMI (Cfr. art. 118.º n.º 1 do CIMI).
Trata-se, portanto, de uma questão similar à da impugnação da determinação
da matéria colectável, quando não dê origem a qualquer liquidação.
A este respeito, e conforme é entendimento da nossa melhor doutrina: “Nos casos em que é impugnado directamente o
acto de fixação da matéria colectável, referidos na alínea b) do nº 1 do art.
97º-A, o benefício que se pretende obter não é equivalente ao “valor
contestado”, adoptado como critério de fixação do valor, mas sim ao imposto que
deixaria de ser cobrado com a alteração do valor da matéria colectável
contestado, que será sempre muito menor que aquele.» (Jorge
Lopes de Sousa, Código de Procedimento e
de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª Edição, 2011, Áreas Editora,
p. 73).
Daí que, como refere o mesmo autor, «(…) em coerência com a opção legislativa subjacente à fixação do valor
prevista na alínea a), deveria, nestas situações de impugnação de acto de
fixação de matéria colectável, optar-se pela fixação do valor da acção em
função do valor do imposto que estaria conexionado com a matéria colectável
contestada.».
Assim, conclui, «Podem colocar-se,
aqui, problemas de compatibilidade deste critério com o princípio
constitucional da igualdade, já que a impugnação judicial de actos de fixação
da matéria colectável em que está em causa a contestação de valor idêntico terá
valor diferente para efeitos de tributação em custas, conforme seja ou não
praticado um acto de liquidação, podendo suceder mesmo que a uma mais ampla
impugnação corresponda menor valor da acção.
É, assim, de aventar a
inconstitucionalidade material do critério utilizado na alínea b), à face do
princípio constitucional da Igualdade (art. 13º da CRP).».
Por identidade de motivos, é de aventar a inconstitucionalidade material do
preceito em causa, concatenado com a regra em anotação – por violação dos
princípios da igualdade e da tutela jurisdicional efectiva – quando, nas
situações referidas, se constate que fica inviabilizada a possibilidade de
recurso.
6. - Note-se que, no regime da arbitragem tributária instituído pelo Decreto
– Lei n.º 10/2011, de 20.01.2011, embora o valor do processo para efeito de
custas arbitrais seja determinado nos termos do artigo 97.º-A do CPPT, estatui
artigo 3.º n.º 3 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem
Tributária, por remissão para o artigo 2.º n.º 1 b) do Regime Jurídico da
Arbitragem Tributária, que nos casos de declaração de ilegalidade de actos de
fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo,
de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores
patrimoniais, o valor da causa será o da liquidação a que se pretende obstar.
Assim, por exemplo, quando se impugna a determinação de um valor patrimonial
tributário, de acordo com as regras plasmadas na alínea c) do n.º 1 do artigo
97.º-A CPPT, o valor da impugnação corresponde ao valor contestado. Logo, se
bem se intui o sentido do regime em causa, quando se pretenda contestar o valor
patrimonial pelo efeito que o mesmo vai surtir numa liquidação de IMI,
constata-se que, no processo arbitral – ao invés do que sucede no processo de
impugnação judicial - será o valor da liquidação a constituir o critério para
definição do valor do processo e das custas.
7. - O artigo 225.º da LOE 2015 estabelece uma disposição transitória no
âmbito do procedimento e processo tributário, referindo que as alterações
introduzidas pela presente lei às normas do CPPT e da LGT sobre alçadas e
constituição de advogados apenas produzem efeitos relativamente aos processos
que se iniciem após a sua entrada em vigor – o que está em consonância com o
artigo 6.º, n.º 6 do ETAF, quando estatui que valor a considerar para efeito de
alçada é aquele que vigorar à data da propositura da acção.
3 Comments:
Bom dia,
Peço desculpa se me estiver a repetir - ontem coloquei uma questão num post e como não aparece, talvez não o tenha feito bem.
Foi com prazer que descobri o seu blog, que aborda questões bastante interessantes e pertinentes - pelo que o incentivo a continuar.
Existe uma questão que fico sem conseguir resolver, no entanto. Como resolver o conflito resultante da existência em paralelo de 2 dispositivos legais contraditórios?
Tanto o art. 105º da LGT como o art. 6º/2 do ETAF versam sobre o valor da alçada - e ambos estão em vigor. Aplicar-se-à o principio da lex specialis - sendo que a LGT cederia passo ao CPPT? Ou presume-se a revogação do preceito do ETAF por lei posterior? E a manutenção do art. 6º/2 no sistema jurídico é uma anomalia por inércia do legislador?
Agradeço a atenção e desejo-lhe as maiores felicidades
Caro Ricardo,
Muito obrigado pelas simpáticas palavras.
De facto, essa é uma das incongruências que, como refiro, resultam da falta de compatibilização sistemática dos diplomas em causa.
Entre a LGT e o CPPT, o primeiro diploma tem prevalência sobre o segundo - como resulta do próprio preâmbulo do CPPT e, bem assim, do seu artigo 1.º.
A contradição latente (e frontal) é, na verdade, entre o ETAF e a LGT.
Penso que terá sido (mais um) descuido do legislador, que apenas pode ser resolvido, na minha opinião, pela revogação tácita da regra constante no artigo 6.º do ETAF - na medida em que a vigência da lei nova materializa a vontade mais recente do legislador, incompatível com a vigência da lei antiga, como resulta da aplicação dos critérios definidos no artigo 7.º do Código Civil.
Cumprimentos.
Bom dia,
Agradeço-lhe a resposta. Acrescento um Acórdão recente de que tomei conhecimento no entretanto.
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2bee42433b33a6b580257f7e004334be?OpenDocument&Highlight=0%2Cetaf%2Cdulce%2Cneto
São estas falhas (graves e de brio) que fazem com não possamos deixar de concordar com as palavras de Casalta Nabais (in Direito Fiscal) quanto à "turboprodução" legislativa e com a "falta de qualidade técnica" da produção normativa.
Os meus melhores cumprimentos.
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