A lista de contribuintes VIP
Na sequência da notícia que dá nota da eventual existência de uma lista de
contribuintes cujo acesso, por parte de funcionários da Administração
Tributária (AT), deu origem à instauração de diversos processos disciplinares,
impõe-se uma reflexão sobre a natureza e âmbito do sigilo fiscal – tal como se
encontra estabelecido na nossa lei.
O direito à privacidade ou direito de reserva da intimidade da vida privada
e familiar, goza de consagração expressa na nossa Constituição da seguinte
forma «a todos são reconhecidos os direitos (...) à reserva da vida privada
familiar» (Art. 26.º n.º 1 CRP). Logo o n.º 2 do mesmo comando constitucional,
salvaguarda que «a lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização
abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e
famílias».
Deste modo, a própria Constituição pretendeu salvaguardar a devassa da vida
pessoal, ao impedir o acesso a informações sobre a vida privada e familiar e ao
impedir a sua divulgação.
Concomitantemente, e em cumprimento desse comando, o legislador viu-se na
contingência de estabelecer mecanismos de restrição ao direito à informação e,
sobretudo, de tutelar o direito à privacidade, mediante o estabelecimento de
uma esfera jurídica apta para garantir a reserva desse direito.
Assim, o sigilo profissional (marcadamente de cariz deontológico, como
sucede com o sigilo médico, jornalístico, ou com o sigilo do advogado),
o sigilo bancário e o sigilo fiscal surgem como manifestações
garantísticas do direito constitucionalmente consagrado à reserva da vida
privada.
No que se refere à situação em causa, e como ensina a nossa doutrina, “O
sigilo fiscal convoca, como seu fundamento, diferentes tutelas jurídicas: da
intimidade da vida privada, da protecção dos dados pessoais e da correcta
utilização da informática no âmbito de tais dados, bem como da protecção da
confiança na Administração fiscal por parte dos contribuintes e de terceiros
com eles relacionados para efeitos tributários” (Pamplona Corte-Real,
Bacelar Gouveia e J. Cardoso da Costa, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 368,
1992).
Enquadrado em termos gerais, surge desde logo a questão de saber se o
direito à reserva da vida privada é absoluto e, em caso negativo, em que
situações pode ser restringido.
A própria Constituição dá resposta a esta questão, ao estabelecer que “A
lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.”
Vale isto por dizer que, tal como se refere no Parecer n.º 20/94, de 09.02,
do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, “os dados
referentes à situação patrimonial de um indivíduo, que a Administração tenha
recolhido para determinado fim, só podem ser revelados a terceiros – outros
sectores da Administração – nos casos previstos na lei, para responder a um
motivo social imperioso e na medida estritamente necessária, no justo
equilíbrio entre o interesse que postula a revelação e a protecção da
intimidade da vida privada”.
(Cfr. proc. n.º convencional PGRP00000656, em www.dgsi.pt).
Deste modo, colocados em confronto o direito de acesso aos elementos na
posse da Administração Pública – de acordo com o princípio da “Administração
Pública aberta” previsto no artigo 268.º, nº 2 da Constituição - e o direito
dos administrados à reserva da vida privada, haverá que proceder-se
a uma ponderação equilibrada dos interesses em jogo. Tal tarefa será levada a
cabo, necessariamente, mediante a convocação das normas que dispõem sobre a
possibilidade de acesso à informação e das que restringem esse mesmo acesso.
Desde logo, haverá que começar por referir que a informação que está em
causa se relaciona com aquilo que, de forma genérica, se pode designar por
“situação tributária” dos contribuintes. Concretamente, estarão em causa informações ou elementos em posse da AT de que resulte densificada e
quantificada a situação patrimonial dos contribuintes.
Desses elementos resultará evidenciada, expectavelmente, a capacidade
contributiva que se visa atingir por meio do imposto – revelando o património
imobiliário, os rendimentos, as despesas, e todos e quaisquer outras realidades
que importem para a definição do padrão fiscal do contribuinte.
Neste ponto, e embora a esmagadora maioria desses elementos resulte daquilo
a que se designa de “deveres acessórios” – como são os deveres declarativos,
contabilísticos e de escrituração – podem estar em causa, de igual modo, dados,
elementos ou informações obtidos pela AT de forma mais ou menos formal.
Efectivamente, são diversos e de várias fontes os dados fiscais, na medida
em que a AT tem acesso aos rendimentos auferidos e às despesas incorridas, à
identificação de contas de depósitos e de títulos, aos bens imóveis e
automóveis; beneficia do intercâmbio e cruzamento de informações com outras
entidades públicas ou privadas; beneficia de troca de informações com outros
países no âmbito do controlo e combate à fraude e evasão fiscal, no âmbito dos
acordos bilaterais destinados a evitar a dupla tributação internacional, e nos
protocolos de assistência mútua administrativa em matéria de impostos sobre o
rendimento.
Dada a extensão e relevância dos elementos fiscais em poder da AT, entendeu
o legislador estabelecer a regra do sigilo fiscal, como corolário do
direito constitucionalmente consagrado à privacidade tributária – assim
tutelando a reserva da intimidade privada dos contribuintes, quer pela via da
proibição do acesso de terceiros aos dados fiscais, quer pela proibição da sua
divulgação por parte de quem está legalmente autorizado a consultá-los.
É precisamente neste ponto que entronca a questão recentemente debatida.
A formulação actual do sigilo fiscal, estabelecida no artigo 64.º n.º 1 da
Lei Geral Tributária, aponta no sentido de que os dirigentes, funcionários e agentes da
administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados
recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e
os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento – como,
de resto, sucedia já no artigo 17.º d) do pretérito Código de Processo
Tributário, aprovado pelo D.L. 154/91.
Também o D.L. n.º 363/78, de 28.11, que procedeu à reestruturação orgânica da
Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, estabelecia no seu artigo 30.º n.º
1, alínea c), que os funcionários da Direcção-Geral tinham o dever especial de
guardar sigilo profissional, não podendo, nomeadamente, revelar quaisquer
elementos sobre a situação profissional e
os rendimentos dos contribuintes.
De igual modo, o artigo 35.º n.º 1 f) estatuía que aos funcionários afectos à actividade de informações fiscais era vedado darem conhecimento das situações de facto postas pelos contribuintes ou de quaisquer elementos que sirvam para a liquidação das respectivas contribuições gerais do Estado ou para o levantamento contra aqueles de autos de transgressão.
De igual modo, o artigo 35.º n.º 1 f) estatuía que aos funcionários afectos à actividade de informações fiscais era vedado darem conhecimento das situações de facto postas pelos contribuintes ou de quaisquer elementos que sirvam para a liquidação das respectivas contribuições gerais do Estado ou para o levantamento contra aqueles de autos de transgressão.
Ora, a consagração expressa, no artigo 64.º da Lei Geral Tributária, de que
o sigilo fiscal se reporta aos elementos que os funcionários da AT “obtenham no
procedimento” deixa desde logo antever que o acesso a esses dados far-se-á,
necessariamente, a coberto das funções administrativas, ou melhor, durante e
por causa de um procedimento administrativo (liquidação, inspecção) devidamente
justificado, ou legitimado, por despacho interno, ordem de serviço ou instrução
interna própria.
Vale isto por dizer que, sob pena de violação do sigilo fiscal e do
princípio da legalidade e proporcionalidade da actividade administrativa, não
podem os funcionários da AT, por mera curiosidade e sem qualquer justificação
funcional, aceder aos elementos e informações sujeitos a sigilo fiscal.
A criação de uma qualquer lista de contribuintes de acesso vedado – nas circunstâncias
em que, obviamente, os funcionários da AT não procedam à consulta dos dados no
âmbito de um procedimento - distorce a regra legal que impõe a salvaguarda
do sigilo fiscal, na medida esta se aplica, indistintamente, a todos os
contribuintes.
Todavia, se é certo que, face aos princípios da transparência, igualdade e
imparcialidade, todos os contribuintes devem ser tratados de forma
idêntica, é também certo que determinados contribuintes estão potencialmente mais
expostos à curiosidade sobre a sua situação tributária e, portanto, à violação
do sigilo fiscal.
De todo o modo, como princípio ordenador da actividade administrativa, o
princípio da proporcionalidade em matéria de sigilo fiscal impõe que o direito
de acesso dos funcionários da AT aos dados que evidenciem a situação tributária
dos contribuintes seja restringido ao estritamente necessário para o exercício
das suas funções.
Apenas desse modo se poderá salvaguardar a confiança depositada e depositável
pelo contribuinte na AT e, simultaneamente, garantir a reserva da intimidade da
vida privada.