quinta-feira, julho 08, 2010

Tributação de Mais-Valias Mobiliárias - Retroactividade e Retrospectividade

A mudança no regime da tributação das mais – valias mobiliárias, operada pela Lei do Orçamento de Estado para 2010, tem gerado, e vai certamente continuar a gerar, muita discussão.
Como é sabido, as mais-valias mobiliárias resultantes de acções detidas há mais de 12 meses passar a estar sujeitas a tributação quando, nos termos da lei anterior, estavam isentas.
A questão surge, essencialmente, dada a tardia entrada em vigor do Orçamento e, portanto, considerando a eventual retroactividade da medida relativamente a:
- acções alienadas antes da entrada em vigor do Orçamento;
- acções adquiridas antes da entrada em vigor do Orçamento, mas cujo prazo de detenção (e, portanto, de isenção ao abrigo da lei antiga) se vai perfazer já ao abrigo da lei nova.

Quando instado, o Ministro das Finanças veio defender, genericamente, que não existia retroactividade da norma, mas apenas retrospectividade.

Uma vez que o próprio não soube esclarecer sobre a distinção, surgiram legítimas dúvidas aos contribuinte sobre o sentido (e legalidade) da norma – de resto, dúvidas semelhantes às do Presidente da República, a julgar pelas notícias que dão como certa a fiscalização sucessiva da constitucionalidade das medidas adoptadas no Orçamento e PEC.

Neste contexto, o Acórdão do Tribunal constitucional n.º 85/2010, de 03.03.2010 e a demais jurisprudência constitucional no mesmo citada, podem auxiliar na tarefa de traçar a distinção entre retroactividade e retrospectividade – ou retroactividade inautêntica, ou imprópria.

Aqui deixamos alguns trechos do referido Acórdão:

«No seu Acórdão n.º 128/09 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional afirmou: «[...] foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou -se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 1092 e segs.).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão ‘retroactividade’ usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe -se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais favorável.[...]
Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado.
Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação jurídico -tributária. [...]
A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe -se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor
da lei nova).»
E acrescentou, ainda, que: «[...] questão diferente da que se deixou resolvida é a de saber se a decisão recorrida deve ser mantida quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade (violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição).
O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal Constitucional. Contudo — e em matéria tributária — a jurisprudência do Tribunal sobre o que queira dizer ‘a necessária protecção da confiança legítima’ não pode deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade — e como o tem dito a doutrina —, com a formulação actual do n.º 3 do artigo 103.º da CRP alterou -se o lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2.º ocupa em matérias de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio.
Quer isto dizer exactamente o seguinte.
A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confiança. Como diz Casalta Nabais (cf. Direito Fiscal, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 149), a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos — nos quais, recorde -se, se não inclui o presente — não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do n.º 3 do artigo 103.º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a ‘utilidade’ do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações — de retroactividade imprópria, ou até de não retroactividade — que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança.»

«No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de ‘retroactividade inautêntica, retrospectiva’. Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava -se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de ‘retroactividade autêntica’ e o tratamento a conferir aos casos de ‘retroactividade inautêntica’ que seriam, disse -se, tutelados apenas à
luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja
tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar –se prevalecentes (deve recorrer -se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou ‘testes’. Para que para haja lugar à tutela jurídico -constitucional da ‘confiança’ é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas’ de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do ‘comportamento’ estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.
Por isso, disse -se ainda no Acórdão n.º 287/90 — e importa ter este dito presente no caso — que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, ‘não há [...] um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações
jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados’.».

De referir que, diferentemente com a situação factual subjacente ao acórdão citado, no caso da isenção na tributação das mais-valias de acções detidas há mais de 12 meses é defensável a tutela da expectativa formada em torno da obtenção de uma mais-valia – e da consequente isenção de tributação.
É que, no caso dos autos, estava em causa a dedução de menos-valias e não a obtenção de mais valias isentas de tributação.
A este respeito conclui o TC que «Na realidade, afigura -se insustentável afirmar que a ora recorrente ao adquirir as participações sociais em causa o fez no pressuposto de, posteriormente, independentemente até de qualquer “proximidade temporal” entre a aquisição e a alienação — que poderá vir a ocorrer décadas após — , as vir a alienar com prejuízo, deduzindo, nesse caso, a totalidade das menos -valias.»

Ora, em sentido contrário, é defensável que o contribuinte, quando adquire participações sociais o faz no pressuposto de vir a obter uma mais-valia com a sua alienação – e, logo, é perfeitamente admissível a formação de uma expectativa quanto à isenção de tributação do rendimento - acréscimo que dai deriva.

Importante para o caso é, também, firmar o momento em que se verifica o facto tributário.
De notar também que o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais veio a público esclarecer que não existe retroactividade porque o facto tributário é de formação sucessiva e haverá de apurar o saldo entre as mais e menos valias. Ora, o que deve contar é a norma de incidência, que estabelece que os ganhos se consideram obtidos no momento da alienação, e não a norma que estabelece a forma de determinação da matéria colectável – essa, sim, que estabelece o apuramento de um saldo.

Logo, se a alienação se verificou antes da entrada de lei nova há verdadeira retroactividade e, portanto, violação do principio estabelecido no artigo 103.º n.º 3 CRP. Se a alienação ainda não se verificou mas existia expectativa fundada de que o rendimento daí derivado seria isento de tributação, haverá retroactividade imprópria, havendo de chamar à colação o princípio, inerente ao Estado de Direito, de protecção da confiança.

Em nossa opinião, tudo teria ficado mais claro caso o legislador tivesse o cuidado de estabelecer um regime transitório.

Trata-se de um assunto que vai gerar, certamente, muito contencioso.

Aguardemos.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A tributação das mais-valias desde o início do ano não será inconstitucional?

Retroactividade autêntica - aplicar lei nova a facto antigo - a compra e a venda das acções ocorreu no ano de 2010, mas antes da entrada em vigor da lei.

Veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a Retroactividade (IRC).
http://dre.pt/pdf2sdip/2010/04/074000000/1968019683.pdf

Dúvidas/Certezas?

domingo, 18 julho, 2010  
Blogger Rui Ribeiro Pereira said...

Bom dia,

Quando, em direito fiscal, se fala na aplicação da lei nova a facto antigo devemos ter em consideração que este é o facto tributário.
Ora, a questão é que no rendimento de mais valias o facto tributário é a alienação e não a compra.
Assim parece que, quanto às situações em que existe compra quando vigora a lei antiga mas o prazo de detenção (e alienação) se vai consumar ao abrigo da lei nova, estaremos perante uma retroactividade imprópria que eventualmente violará o princípio da segurança jurídica mas não será retroactiva porque o facto tributário se consuma ao abrigo da nova lei.

segunda-feira, 19 julho, 2010  
Anonymous Miguel P. said...

Parabéns pelo texto.

Faltou abordar um argumento a favor da não inconstitucionalidade e que é a questão do facto tributário em IRS ocorrer no última dia do ano à semelhança do IRC (mesmo que não expressamente previsto - ao contrário do CIRC), e que tem a ver com a lógica do saldo anual positivo ou negativo, algo que só no final do ano se consegue aferir.

Daí discordo de si quando escreve que nas mais-valias o facto tributário ocorre quando se dá a alienação, o que pode não ser verdade, no limite esse facto tributário é potencial ou condicionado ao facto de vir a ser superior ao saldo das menos-valias.

Que acha?

Parabéns pelo blog.

terça-feira, 17 agosto, 2010  
Blogger Rui Ribeiro Pereira said...

Caro Miguel,

Antes de mais, muito obrigado pelas simpáticas palavras.
Quanto à questão que coloca, efectivamente a questão da retroactividade pode ficar algo melindrada no IRC, tendo em conta que existe uma disposição expressa a consagrar que o facto tributário se consuma no final do período de tributação.
No entanto, ainda assim, quanto à questão do apuramento do saldo, como refiro, o mesmo não está no capítulo da incidência mas sim no capítulo do apuramento da matéria colectável.
Ora, o facto tributário em sentido próprio (aquele de onde resulta um rendimento-acréscimo) continua a verificar-se com a alienação, mas ainda não é possível aferir se o eventual ganho vai ou não ser sujeito a tributação uma vez que ainda não foi apurada a matéria colectável - mormente por ainda não se saber se há menos-valias a considerar.
Logo, quando se coloca em causa a entrada em vigor de uma norma que revoga uma anterior que estabelecia a não sujeição a imposto das mais valias resultantes da alienação onerosa de acções, apenas pode estar em causa, sob pena de verdadeira retroactividade, a sua aplicação a factos tributários (em sentido próprio, vgr. alienações de acções) ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor.
A questão não é, no entanto, pacífica.
Isso se encarregará de demonstrar a jurisprudência vindoura.

terça-feira, 24 agosto, 2010  

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